sábado, 19 de abril de 2008

Naturalidades e normalidades


Meia-noite. Sons vindos de fora da janela. Pingos, muitos deles na harmoniosa sinfonia de uma chuva que cai. Um cheiro de chuva mistura-se à terra. Ergue-se a fragrância, invadindo espaços. Sempre curti esse odorzinho de terra molhada. A sensação é quase bucólica, embora meu espaço seja visceralmente urbano. Acabei de despedir de um amigo que veio buscar orientação. Ouvi-o atentamente por horas. Nada de obrigações entre meu ouvir e o falar dele, mas cordiais prazeres. Suavizei o papo falando de coisas que sei que ele gosta. Mais calmo que no início, falou com paixão de suas dúvidas e seus temores. Falou de muitas intensidades também, algumas perigosas pra meu estalo de bom senso. Mas soube lhe entender. Isso lhe bastou. Foi-se. Como chovia bastante, levou meu guarda-chuva emprestado. Não queria, mas eu insisti.

Refleti em tudo que nesta noite ouvi. Pensei um pouco sobre as escolhas que fazemos. Pensei sobre as conseqüências das escolhas que escolhemos pra nós. Quantos não se perturbam com a colheita de suas ações? Somos quase todos assim. Plantamos sementes, mas nem sempre queremos enxergar os frutos-resultados na colheita. A vida é a semeadura acerca da qual tantas vezes falei por aqui. Vida e semeadura se misturam em conceitos práticos. O chato na vida, podem dizer alguns, é que nem sempre queremos esperar pela colheita. Não falo de ansiedade, mas daquelas curiosidades molecas e festivas. É normal. Viver é normal. Plantar e colher – o princípio da ação e reação ensinada pelos físicos desde Newton – também deve ser normal.

Mas o que é “normal” em se tratando de seres humanos? Boa pergunta. Fez-me lembrar “O Alienista” de Machado de Assis e sua crítica à postura cientificista de sua época (que não via o ser humano na sua integridade, como um todo entre corpo e emoções). Na obra machadiana, os loucos foram soltos do hospício por serem vistos pelo ângulo da normalidade declarada. Normal, às vezes, é o que chamo de natural. É algo proposital depois de ler num fórum que participei na Internet umas palavras intransigentes sobre significados de “anti-naturalidade”. Dia desses qualquer contarei melhor a respeito. Prossigo minhas reflexões me ventilando ares questionadores. E o que é anti-natural pode ser visto como anormal? Nem sempre, penso. Depende do olhar de quem vê. Tem a ver como você e eu encaramos as sementes que temos nas mãos. Pra mim, anti-natural é insistir no que é declaradamente equivocado. E quem declara que é ou não é assim e assado? A própria experiência. Basta ter olhos pra ver. O amor nunca será equivocado. Barganhá-lo sim. Quem barganha amor é porque desconhece o que seja. O amor é livre. A liberdade é natural. A prisão é anti-natural. Viver preso não pode ser normal. Sei que não falta é gente que caminha na anormalidade. Não falo de loucura. Falo de aprisionamentos no ser. Mas sei que o amor liberta quem ama. Lembrei de Adélia Prado: “Amor é a coisa mais alegre, amor é a coisa mais triste, amor é a coisa que eu quero.”

Dez ou quinze minutos se passaram. A chuva apertou e o que antes era sinfonia, perdeu-se em meio ao espalhafato daquelas onomatopéias de gotas, pingos, poças e timbres desconcertantes e desconhecidos. Meu coração tá repleto de considerações depois daquele papo. Fechei a janela porque a paisagem branqueou com a chegada de vento e chuva intensa. Gosto de janela aberta, mas fechei-a. Era preciso. Muitas vezes é preciso fechar janelas pra evitar incorrer nos mesmos erros. Falei isso pra meu amigo. Ele se julga preso na sua própria prisão. Tem a ver com alguns temores dele – temores sociais. Ambos encerramos o papo com acordos velados de não perfurar mais as sementes apresentadas. A vida é realmente uma semeadura muito particular e tão harmoniosa quanto pingos ritmados de chuva no telhado. Continuei no pensamento depois que se foi. Porém, não me mantive preso a ele. Sequer me mantive preso a dar explicações dos meus porquês quanto a ter escrito o que escrevi. Este é o preço da liberdade. A naturalidade de ser simplesmente normal. Até mesmo pra se dizer “fechei a janela” por ora. Deixemos a chuva passar...

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