quinta-feira, 23 de abril de 2009

Uma fábula sobre o que se pode pensar do amor



Junto a saída principal do CCBB, em frente à Livraria da Travessa, dois rapazes aparentando serem estudantes conversam assentados num dos bancos do saguão. Assentado bem próximo um outro alguém a cujo respeito limitarei dizer tratar-se de um sonhador de olhos abertos. Não há muito o que adjetivar tanto de um quanto dos outros. Na imensidão daquele vão de saída os bancos se dispõem lado a lado. Pra quem já passou por ali sabe que há todo um favorecimento da própria acústica enaltecendo qualquer sussurro naquele ambiente. E não apenas ela, a acústica, mas, no caso em questão, alguma coisa também parecia priorizar as cenas como se estivessem sendo gravadas em slow-motion. Dois estudantes e a atenção de ambos se curvando desmedidamente para um daqueles laptops wireless sobre o colo de um deles. Pelas múltiplas imagens que a todo instante se abriam, pareciam conectados à grande rede.

A conversa prossegue em meio aos cliques e ‘enters’ até que os ventos mudam o rumo da prosa num diálogo teatralesco para os ouvidos atentos do sonhador de olhos abertos. Como num abrir de cortinas, aqueles dois estudantes parecem imergir sob o holofote de uma outra atenção. Como numa boca de cena as frases vão destrinchando palavras interessantes na apresentação daquele diálogo. Mais do que as frases, o que tornava tudo interessante é que ali se destoavam duas qualidades diferenciadas nos seres humanos ditos humanos. Duas visões diferentes sobre suas próprias existências. Dois olhares do que nos cerca – do lado de dentro e de fora – como reflexo da riqueza com que conjugamos nossa existência e a visão que temos dela sobre o mundo a partir de nós. Cada um seguiu defendendo sua própria e heróica verdade segundo o olhar que carregava do amor...

Se tudo não passou de mais um sonho, não sei. Só sei que foi assim que o sonhador de olhos abertos captou parte daquela epopéia urbana contemporânea:



- Anjos, o que são?
- Anjos são mensageiros.
- Ah, tá bom. Onde podemos contratar um?
- Até onde sei nunca ouvi dizer que se contratam anjos...
- Ah, corta essa! É lógico que em algum lugar se pode contratar anjos!
- Pode procurar, será perda de tempo! Anjos não se contratam porque não estão à venda! Eles são inegociáveis...
- Engano seu! O que não é negócio nesta vida, heim?
- Ora, o amor!
- Tem certeza? Até o amor é "business"! Abra agora o MSN! Vai, abra!
- Pára de tolice! Pra que iria abrir o MSN?
- Vou te mostrar como se compra amor facim, facim...
- Não vou abrir coisa alguma! Vai pensando que amor se compra, vai...
- Cara, chega a ser ridícula essa tua ideia do mito do amor romântico!
- Ridícula por quê?
- Porque isso não existe. Acabou. C’est fini. Dá pra entender ou quer que eu desenhe?
- Pra início de conversa, o amor jamais acaba...
- Voilá! São Paulo aos Coríntios!
- Correto!
- São Paulo de hoje é uma outra história. Aliás, qualquer grande cidade!
- Você sabe muito bem que me refiro ao apóstolo! É “o”, e não “a” São Paulo.
- E você sabe que no fundo, no fundo, o amor existe porque a vida também é "business". Você me ama. Eu te amo. Não importa em que nível. É assim até que eu venha conhecer um melhor ‘produto’, você sabe... Nada é perfeito. As coisas são mais práticas nos nossos dias...
- Você quer dizer mais ‘plásticas’.
- Que seja! [Cantando Titãs] "As flores de plástico não morrem". Por isso que o amor nunca acaba! Ele é plástico como tudo na vida!
- Não, agora posso dizer que você viajou legal...
- "It's true, is business!" É a realidade! O mundo muda, meu caro. Você tá nele e nunca parou pra perceber?
- Daqui a pouco vai querer me convencer que já existe o “love delivery”, pronta entrega do amor que você precisa em casa, na hora que bem desejar...
- Pode apostar que sim. Tenho amigas e até amigos que já agarraram muitos entregadores em domicílio. Duvida? Pergunte a eles o que acharam do ‘serviço’... [gargalhadas]
- Das duas uma, ou você tá ficando maluco ou eu é que não devo ser desse planeta!
- Péeeeeeeinnnnh! A campainha avisa que está correta a segunda alternativa! Uma salva de palmas ao ‘momento lucidez’!
- Chega de chistes por hoje! Chega de reduzir a vida nesse palanfrório!
- Não falei de vida. tá enganado! Falei sobre o produto mais consumido no mundo capitalista depois da água e da cocaína: o amor!
- Vida. Amor. E quem te disse que um existe sem o outro?
- Bobagem! Quantos não sobrevivem sem amor!?
- Isso! Exatamente isso! Muitos até podem sobreviver. Viver requer muito mais que uma sobrevida existencial... Viver requer amor. Amor é vida. Vida sem amor não é vida, mas mera existência. Amebas existem. Formigas existem. Hienas existem e riem sem nem saber os porquês. Seres humanos não deveriam apenas existir...
- “Não deveriam apenas...”? E deveriam mais o quê?
- Viver. Sair de si. Pra amar é preciso sair de si, já dizia o poeta Vinícius.
- Mais uma vez com poesia! Blá blá blá... Isso não muda os conceitos, não muda o mundo!
- Mas pode mudar uma pessoa! Vamo embora! Desisto de prosseguir!
- Valei-me santos anjos! Vocês existem! Depois a gente acerta as contas!
- Desliga esse laptop! Um dia vai saber que o amor é um ‘anti-isso’ que me falou...
- Vamo então, poeta! A vida é escrita em versos e cifrões, queira entender ou não...


Ambos levantaram-se. Foram-se. Aquelas palavras ficaram ali presas naquele recinto. O eco parecia eclodir os vidros da rotunda bem no meio do saguão. Alguns ouvidos captaram. Só não se sabe quais daquelas verdades nem quais ouvidos as receberam, senão os do sonhador e os das estátuas de Hermes espalhadas pelo edifício. Antes o sonhador tivesse dormido e não conseguisse ouvir o que ouviu. Quando os olhos são abertos quase sempre é o coração que mais sente...


segunda-feira, 20 de abril de 2009

Os minutos, os sons e as cores de domingo




Olhando o relógio, um ímpeto enaltece a vontade só pra soltar as horas. Fico imaginando como os ponteiros se comportariam na liberdade. Tantos anos engessados, de início, suponho que se recusariam a saltar rumo ao ‘kayrós’, o tempo sem dicotomias ou quaisquer frações cronológicas. O engessamento faz parte das rotinas. Não apenas a dos ponteiros. Vou vendo que nem todo o começo (ou recomeço) é fácil. Cambaleantes, tanto eles quanto nós ainda insistimos no caminhar trôpego. As coisas parecem rodar, rodar. É o desacerto procurando ritmo pra acertar. Os joelhos vacilam. Do nada, põem-se de pé. O despertar é assim mesmo. Um pouco preguiçoso. Sem muitos sonhos pra estimular. Há uma epiderme sobre os ossos que nos belisca e nos faz crer que essa vida anda. Sente. Segue. Tal como os dias. Um após o outro. Cada um singular como tem que ser. As horas, já soltas, também dão contam do recado. Sinto este mistério se desvendando. A coisa em si reveste-se em significado e em importância. Saber que em qualquer um de nós as coisas caminham rumo ao que nos propomos é um sabor a mais na degustação do prazer. Que mais importaria? Se sonhos, que sigam com asas pra chegar mais rápido. Se realidade daquela tipicamente nua, que siga plantada com chance de enraizamento.

Em meio ao desabrochar dos minutos em total cumplicidade com a existência, uma breve permissão para um vôo abaixo da epiderme. A dimensão em profunda metamorfose de realidade para sonho. Levei-me pra ver a mostra de arte contemporânea “Vertigem” com OSGEMEOS. Aqueles personagens amarelos me protagonizaram minutos ao lado das fábulas mágicas que denunciam o mundo de tristezas e alegrias. Tudo isto, diga-se, através de um olhar primoroso de transparência e ingenuidade. Dei-me de presente algumas cores para as paredes do meu coração. Voltei menos incomodado. Bem, até certo ponto. Já que tinha me proposto mergulhar pra dentro das águas oníricas, nada melhor que encerrar as horas assistindo O fabuloso destino de Amelie Poulin. Pra quê! Extravasei meus ecos aprisionados entupindo os poros antes abertos com lágrimas avulsas. Não poucas porque o momento – ah, este momento! – me seduz com acenos de “live and let it go!”. Queria ser daqueles que constroem frases raras e, portanto, perfeitamente sadias – como falou Henry Thoreau num de seus poemas – só pra sinalizar que aquele final acabou levando todo o meu estoque de projeções pessoais. Não sei porque acabei citando o poeta pacifista Thoreau. Talvez porque meus dias andam na certeza de “uma vida de cada vez” ou, como gosto, de um minuto sem pressa das horas...

Manhã de domingo. Dia de feira livre. Gosto daqueles vaivéns de olhares, ora furtivos, ora atentos, sobre as frutas, sobre os legumes e sobre as tabelinhas riscadas de giz e cifrões. As cores estão por toda a parte. Os meus olhos se distraem com tantos retalhos de detalhes. Eles formam uma colcha multicolorida de gente, de corpos, de folhas, de talos, de cheiros e de um céu de anil estirado sobre nós. Que cenário! Crianças nos carrinhos de bebês. Senhoras apressadas e tagarelas. Senhores com gravidade e ares de circunspecção. Gente que deu bom dia ao dia. Gente que mal acordou. Gente solta de si mesma. Gente acorrentada pelas horas. A cada aproximação, ‘bom dias’ pra plural nenhum botar defeito. Mais uma vez voltei pra casa com mãos impregnadas de odores e bolsos fartos de sons.

Pausa para o almoço. Em seguida, antes que os odores desapareçam, corro pra rabiscar algumas linhas. Uma necessidade de liberdade como a que vi nas ruas da feira me sacode pra pingar cores no texto. Lembrei-me das cores que ganhei pela manhã. Tudo de graça como são o sorriso franco e o aperto de mão dos cavalheiros. Uma idéia de última hora resolve aparecer antes do ponto final. Pego pequenos objetos. Um par de óculos escuros e uma câmera pra ser mais preciso. Corro pra rua e faço sinal para o táxi. Salto ao lado do Copacabana Palace. Os lábios já sentem o sabor do mar. Atravesso o calçadão e me disponho na direção do maior divã do mundo. Por descuido – ou mera intuição, sei lá! – olho para o relógio e não vejo os ponteiros por lá. Sorrio por dentro imaginando que eles também devam estar em bom lugar. Livres do tempo.


O abraço da brisa me torna cúmplice da paisagem, me lança pra dentro do cenário. Aceito-o de bom grado. A esta altura os passos não me pedem nada. Seguem com as horas. A tarde de domingo fala por meio de tantos detalhes. Cachorrinhos. Carrinhos de bebês. Cadeiras de rodas. Estátua viva. Corredores apressados. Ciclistas concentrados. Mulheres bonitas. Homens, igualmente. Casais apaixonados. Vendedores hippies. Policiais atentos. Um grupo de MPB cantando Ana Carolina. Um salva-vidas. Um surfista abaixando o zíper do traje. Um casal de garis varrendo as marcas pretas e brancas do calçadão. Turistas como as areias da praia. Muitos idiomas. Muitos dedos em riste para cada canto. Garotos exibindo seu futebol de areia. Rapazes em saques e defesas espetaculares nas redes de vôlei. Assisto a uma partida sem qualquer necessidade senão a de não ter necessidades. Capturo imagens, qualquer uma que venha emprestar significado. De um instante a outro já estou no meio dos pescadores junto à colônia de pesca de Copacabana. Idosos conversam libertando o passado. Assento-me num daqueles bancos bem ao lado do Forte. Uma roda gigante bem ao fundo saúda a campanha para os jogos olímpicos na cidade. Mais uma vez, algumas capturas com a câmera. Olho gente me olhando. Escuto os sons dos outros. Uma orquestra empresta e recolhe sons. Tudo acaba em troca. Passo na porta da Paróquia da Ressurreição. Da rua avisto que uma missa prossegue, mas são as pessoas com caras felizes que me chamam a atenção. Mais à frente, o Arpoador. A dimensão das coisas torna-se tão enaltecida que me comove. É o entardecer fazendo solos com assovios das brisas e rabiscando de dourado o firmamento. Aquilo, pra mim, me encanta como canto de sereias. Flashes e mais flashes. Muitos casais. Eles são casais, não importando se héteros ou gays. São muitos corações trocando segredos em meio àquelas pedras. Pulando de pedra em pedra, atinjo o topo. Muitos olhares fitos para o espetáculo do entardecer. Quase todos assentados nas poltronas imaginárias. Refestelo-me numa das pedras e também troco segredos de liquidificador. Eu comigo mesmo. Eu com os céus sobre mim e os céus dentro de mim. Fiz as minhas preces sem pedidos, questão de costume. Olhei a espuma do mar tomando banho nas ondas. Sorri mais uma vez por dentro com tanta gente serenada ao redor de mim. Fiquei por ali enamorando o firmamento até que Alguém apagou a luz da tarde pra acender estrelas...
...

Nota: apenas para os que ainda não assistiram ao filme ao qual me referi (e para que o mergulho se aproxime do significado das palavras que pari logo acima), trecho do final que me encantou sob os sons de “La Valse d’Amelie”.



sexta-feira, 17 de abril de 2009

O agora e o minuto seguinte



Passos generosos e nada acanhados. Uma lágrima teimosa, daquelas incautas, pula pela janela da alma. Até a saudade mareja os olhos e acaba umedecendo o rosto no trajeto vertido. Que horas são? – a pergunta é pra eu mesmo me ouvir. Faz um bem danado saber que o pensamento não tá preso lá atrás. Se assim não fosse, a esta hora estaria fazendo alusões ao que vivi na sexta-feira passada. Sete dias se passaram. Parece sete dias de caminhada em profundo silêncio-de-mim...

Aqui dentro um “sempre” ora me atordoa, ora me indispõe comigo mesmo. O tempo, às vezes, aparece apenas vestido de “sempre”. É quando o que parece eternidade não tem fim. Uma lição inesperada – e ao contrário do que imaginava –, é que nem todo “para sempre” é contente. Tem sempre alguma coisa diferente pra acontecer. Um sempre-algo-inesperado. A saudade. A dor. A tristeza. A dúvida estéril. O que trará o Carregador de minutos seguintes?

A vida é uma longa espera. Uma estrada e uma espera, diria. Tudo acontece num minuto e basta. Passou. A gente fica com cara de não-sei-o-quê! Mas até a cara passa. Amarrada, se solta. Solta, se fecha. Novamente se abre e um e outro “talvez” desconcerta o “sempre”. Tudo, no entanto, muito lentamente...

O que há lá fora que me encolhe de tanto frio? Nenhuma resposta. Insisto. O que há aqui dentro que me arrepia diante de tanto frio? O que foi e que não volta mais. O instante que nunca é igual ao que passou. A lembrança que nunca mais se terá senão a que eu mesmo aprisionei. O cheiro, a pele, o riso, o barulhinho dos passos de quem se perdeu... Tantas lembranças! De repente, a única certeza. O Carregador de minutos seguintes voltará, mas a gente não sabe o que traz. Isso não soa alguma coisa fria? Tem dias que sim. Tem dias que não. Hoje, sinto-me exercitando o direito fruto da liberdade pra dizer que sim. Este é o meu “sempre” dentro do qual o meu agora está preso.

É precisamente neste agora no qual reflito que há tanto frio. Tudo o que eu queria era só duas ou três coisas pra aquecer, quem sabe deseternizar uns fatos. Que a saudade me avisasse quando tivesse que doer. Que os dias voltassem a ter as 24 horas que me acostumei. Que meu caminhar com os próprios pés não viessem a se cansar, mesmo sabendo que algumas companhias se foram.

Os passos prosseguem. Não me perguntem onde estou. Até eu mesmo tenho me feito o mesmo questionamento. Se estou ficando louco? Pasmem! Ainda há gente que crê ser possível a imunidade em meio à selva urbana?! De perto, repita-se o poeta-cantor, ninguém é normal.

Caminhando e cantando emudecido avisto lá na frente uma casinha com lâmpada acesa. Altercado com os próprios passos, me aproximo pouco a pouco. A casinha se agiganta na medida da aproximação. A luz se torna forte demais, parece não caber naquele lugar. De fato, não cabe. Começo a perceber as coisas se encaixando. Elas sempre se encaixam quando os passos se aquietam. Não é uma casinha qualquer, é um ambiente de portas abertas. Não é uma lâmpada qualquer, é um sol querendo estar a pique.

Alguma coisa me diz que todo este cenário tem dedo do Carregador dos minutos seguintes. De repente, um assovio desliza pelo vento. Me alcança e me convence a se aproximar mais, a chegar bem perto, a retomar o prumo e a convidar o sol pra sair por qualquer das portas. É uma escolha. Acredito que tenha a ver com a liberdade que, heroica e corajosa, nos lança para o caminhar com os próprios pés.

Meu instante de reflexão é como faca de dois gumes. Corta meu pensamento, multiplicando-o em muitos outros. Pouco a pouco um fio de certeza vai quebrando todo o frio. Digo um fio porque tenho aprendido que nem toda a certeza cabe dentro da gente. Somente a que for necessária. É hora de buscar o sol pra colocá-lo novamente no firmamento, mesmo que fique tortinho à primeira vista. Pra que perfeição nessas horas? Há muito trabalho a fazer. Apesar das saudades, há muito o que se fazer. Tanto lá fora quanto aqui dentro...


domingo, 12 de abril de 2009

Num domingo de Páscoa tão diferente dos demais


Há muitas gentes nas ruas. Tantos rostos. Tantas histórias. Cada uma delas, porém, um universo particular. Naquele infinito que somente cada um pode desvendar – o chamado “eu” – a dimensão existencial de tudo o que vivemos e recordamos. Lembranças me povoam as constelações que cabem em meu próprio mundo. Explosões se irrompem aqui dentro e, sem nem perceber, rios caudalosos nascem sulcando os poros do rosto até formarem uma foz corrida abaixo. São chuvas, não são apenas águas. Chuvas de lágrimas. Uma e outra lembrança – talvez o conjunto delas – passando como filme aqui dentro. Imagens de meu pai, das nossas conversas, dos instantes de agonia quando queria me ver mas seu olhar se esquivava para outra dimensão bem maior que a minha. Queria ter-lhe contado tantas coisas de mim. Queria ter-lhe mostrado tantas vitórias que estão por vir. Queria ter-lhe compartilhado alguns sonhos, os mais recentes, os de hoje. Por outro lado, se o “crómos” – o nosso tempo multifacetado em horas, minutos, segundos, centésimos, e por aí vai – não convergiu para as oportunidades que delas sinto falta neste instante, sei que o “kayrós” – a dimensão pra lá de quântica, talvez pelas conseqüências de eternidade que somente a Graça pode se autoexplicar – guarda um quê de mistério com ares de certeza, fruto da fé. Um dia nos veremos para continuar o que aqui a limitação das coisas não nos permitiu. Bem, falo por ora. O pensamento engravida a lembrança em dores de parto como as das saudades. Sou um gestante em potencial assim como cada um que produz as mesmas emoções. Gestantes. Grávidos de lembranças. As dores de parto, mais uma vez, se aproximam. É hora de me aquietar por uns instantes e deixar fluir os fluxos caudalosos que me formam cascatas lindas de espontaneidade, amor e saudade de meu pai. Ontem, em meio a dor da perda, sepultei meu pai. Hoje, no domingo de Páscoa, inspiro-me pra ressuscitar todas as lembranças como sementes de afeto, as que mais gosto de semear. Como meu pai fazia. Tal pai, tal filho. Que orgulho!

Sei que há brotos nascendo aqui no meu peito - um processo natural quando se rega tais sementinhas. É por isso mesmo que este "fim" não termina aqui. Até breve!




Nota 1: Como diz a letra de uma canção, “a saudade eterniza a presença de quem se foi”. Perdas Necessárias. Quanta verdade!

Padre Fábio de Melo - Perdas necessárias (Com. Transforme em Jardins!)






Nota 2: aos que não entenderam as razões de meu silêncio, aos que cogitaram mil coisas, aos que souberam e compreenderam, aos que telefonaram pra oferecer o coração, aos que semearam palavrinhas por e-mail e outros recursos, aos que rezaram (tanto em silêncio quanto em letras engravidadas de sentimentos), aos que, mesmo sem entender, foram eloqüentes no silêncio e se mostraram presentes do mesmo modo, um punhado de gratidão espalmado na direção de todos. É dado de coração, ainda que pela mão deste ser saudoso, mas convicto que a paz é o melhor lugar pra se estar.

sábado, 4 de abril de 2009

Ressignificados



Algumas semanas fora, mas não propriamente fora da cidade ou do país. Sabe aquelas coisas que nos ocorrem sem que nos preparemos por completo? Fato é que ninguém sabe o que nos reserva o momento seguinte. Talvez por isso seja tão inquietante. Alguns defendem que não é diferente com o tema “morte”. Mas esse não é nem de longe o que me propus nestas linhas parideiras. Quando falei das coisas para as quais não encontramos espaço no nosso comum, referia-me a realidades que nem sempre são personagens protagonistas de nosso cotidiano. Aliás, não o são da maioria das pessoas. Nunca parei pra pensar nisso, mas tive a leitura íntima dos fatos quando o que veio a ocorrer foi justamente um problema de saúde no coração de meu pai. Foi a partir daí que comecei a ressignificar certas coisas, algumas das quais valores. Mergulhei fundo pra dentro da incerteza, nadei nas águas gélidas da tristeza vendo meu pai desfalecido, premeditando morte. E foi lá naquele oceano em mim que entendi que era preciso ressignificar muita coisa. A começar em mim, perpassando pelos meus diletos conceitos. Ressignificar.

Precisei cuidar de meu pai durante toda a convalescência. Sim, ressignifiquei tanta coisa que até alguns papéis, temporariamente (e por uma justa causa) se inverteram. Penteava seus cabelos brancos, brincava com os penteados que inventava, dave-lhe banhos gostosos, levava-lhe água e os remédios nas horas certas. O tempo afastado daqui, quero dizer, destas linhas me trouxe inúmeras lições ante ao que assisti pelas andanças em diversas clínicas e até num hospital da rede pública (o primeiro lugar para onde o levei quando desfaleceu). O enfrentamento de problemas, sobretudo os inesperados, sejam eles de que natureza forem, são por si mesmos uma grande oportunidade. A gente só entende de fato quando mergulha de cabeça nesta grande “oportunidade” dita problema. Trata-se do mergulho ao conhecimento de nossos limites. Gozado, lembrei de uma obra que li e que falava que os chineses é que estão certos quando no seu idioma apreendem de uma mesma palavra – “crise” – o termo “oportunidade”. Posso lhes dizer que não tem como não concordar com os orientais. De fato o que ocorre, na prática, é isso mesmo. Oportunidade. A palavra carrega sua própria raiz etimológica. Estas raízes são “chose de la vie”, diria Deise, minha amiga que teima em só falar francês quando se encontra comigo.

Considerando as coisas que nos acometem sem [nos] esperar – porque nem tudo é previsível justamente pra não esmaecer diante de um simplismo existencial -, a cada dia me convenço que a vida é sim uma espécie de roda-gigante. Hoje estou bem; já amanhã nunca se sabe. Aliás, alguém aqui arriscaria dizer o que nos revela o minuto seguinte? Pura redundância, o minuto seguinte é o que será. Quanto a ele, não importa. Importa o “como” se deve enfrentá-lo (ou como enfrentaremos). Isto é o que acaba prevalecendo no final de todas as coisas [in]esperadas.

Tinha falado de ressignificados justamente ao pensar nessas coisas. Ressignificar a vida. Os problemas. As adversidades. A própria existência. “Como” acaba sendo muito mais epidérmico do que um “por que” inquiridor, é o que penso. Um revela certo cuidado com o que de fato é sem se importar com as razões periféricas; o outro, apenas um pré-qualquer-coisa com vistas a uma explicação desejada.

Quase sempre é preciso dispor-se de alguns saltos para se ver a mesma situação com o mesmo tamanho que todos os mortais a vêem todos os dias. É a tal capacidade de ver-se no tamanho que se é que dignifica a paisagem – toda ela – enquanto se percorre a estrada-vida. Há quem afirme que o belo é o que se torna comum, sem perder a sua grandeza. Chegar até aqui não é tão fácil, bem sei, há que se ter ousadia e acuidade desmedidas para discernir todas estas realidades.

Vi de perto como muitos são relegados a segundo e terceiro planos nas emergências dos hospitais. Tudo a que assisti não passou de um retrato daqueles em 3x4. Desde aquelas duas jovens a quem ajudei com algumas informações e que traziam seu pai quase desfalecido, pedindo um colchonete que fosse para o pai deitar-se (e que acabou sendo atendido ‘em parte’ por uma enfermeira que, após a insistência das jovens, trouxe dois cobertores), àquela outra que, indignada, me contava que seu pai estava internado há dois dias sentado na emergência porque não tinha mais vaga em leito algum. Sequer na enfermaria. E olha que a coisa estava apenas em 3x4. Fico imaginando como não se dá o retrato desta miséria sob o aspecto “macro” da coisa.

Ante o caos na rede pública de saúde (que começa pelo desvalor dado à pessoa), felizes os que podem pagar pela rede privada como foi o caso de meu pai. Tudo isso é muito triste, tão triste que não encontra resposta na obviedade dos discursos políticos tentando explicar o inaceitável. Ano após ano os Tribunais de Contas dos Estados aprovam as contas das secretarias – entre elas, as de saúde – como se os recursos estivessem realmente sendo aplicados. Em suma, tudo paira tão fantasioso como os tijolos amarelos da estrada que levava Dorothy até a Cidade das Esmeraldas em “O Mágico de Oz”. Perdoem-me a comparação, a obra de Lyman Frank Baum não mereceria tamanha infâmia!




Mas não quero perder de vista o tom da esperança. Mergulhado naquele oceano com inúmeras ondas bravas de descaso e de um arrogante “selfismo”, assistindo a cenas que nunca imaginei assistir tão perto da realidade, lembro-me de um enfermeiro que me atendeu. Não sei o nome dele. Não perguntei, sequer tinha cabeça pra isso naquele instante. Fiquei de 7h até às 20h numa emergência vendo como aquele rapaz lidava com os doentes, como consolava os familiares, como se importava e como o toque – apenas o toque – tranqüilizava os desesperados. É isso. Importar-se. Aproximar-se e tocar. O mundo seria menos caótico se houvesse mais pessoas se importando com o que fazem e como fazem. Aquele jovem esguio e de olhar lânguido, cabelos compridos e passos curtos e rápidos, pareceu-me um beija-flor numa floresta em chamas.

Passado tudo aquilo a que assisti, a certeza que me restou veio como tábua de salvação naquele universo bravio. Senti-me convidado a rever o significado que cada coisa dita importante – vida, saúde, família, carinho, atenção, etc – acaba tendo quando o minuto seguinte se torna nossa realidade deste instante. A isto chamarei de ressignificar valores. Sinto-me ressignificando muita coisa aqui dentro enquanto escrevo. No final das contas, minha conclusão não é “concluível”. Em meio a tanta ressignificação sei que o que me ocorre é como uma conjugação em gerúndio. Um processo cujas ações povoam o lado de dentro. O que virá a partir daí somente o tal minuto seguinte revelará. Sem pressa. Sem todas as certezas. O “como” acontecerá é o que importa!



Nota: sementes de gratidão para todos aqueles e todas aquelas que souberam dos fatos antes que o publicasse e me regaram com águas de consolo e carinho. O beijo há de impingir o que até agora não seguiu nos últimos agradecimentos, estejam certos!

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