Junto a saída principal do CCBB, em frente à Livraria da Travessa, dois rapazes aparentando serem estudantes conversam assentados num dos bancos do saguão. Assentado bem próximo um outro alguém a cujo respeito limitarei dizer tratar-se de um sonhador de olhos abertos. Não há muito o que adjetivar tanto de um quanto dos outros. Na imensidão daquele vão de saída os bancos se dispõem lado a lado. Pra quem já passou por ali sabe que há todo um favorecimento da própria acústica enaltecendo qualquer sussurro naquele ambiente. E não apenas ela, a acústica, mas, no caso em questão, alguma coisa também parecia priorizar as cenas como se estivessem sendo gravadas em slow-motion. Dois estudantes e a atenção de ambos se curvando desmedidamente para um daqueles laptops wireless sobre o colo de um deles. Pelas múltiplas imagens que a todo instante se abriam, pareciam conectados à grande rede.
A conversa prossegue em meio aos cliques e ‘enters’ até que os ventos mudam o rumo da prosa num diálogo teatralesco para os ouvidos atentos do sonhador de olhos abertos. Como num abrir de cortinas, aqueles dois estudantes parecem imergir sob o holofote de uma outra atenção. Como numa boca de cena as frases vão destrinchando palavras interessantes na apresentação daquele diálogo. Mais do que as frases, o que tornava tudo interessante é que ali se destoavam duas qualidades diferenciadas nos seres humanos ditos humanos. Duas visões diferentes sobre suas próprias existências. Dois olhares do que nos cerca – do lado de dentro e de fora – como reflexo da riqueza com que conjugamos nossa existência e a visão que temos dela sobre o mundo a partir de nós. Cada um seguiu defendendo sua própria e heróica verdade segundo o olhar que carregava do amor...
Se tudo não passou de mais um sonho, não sei. Só sei que foi assim que o sonhador de olhos abertos captou parte daquela epopéia urbana contemporânea:
- Anjos, o que são?
- Anjos são mensageiros.
- Ah, tá bom. Onde podemos contratar um?
- Até onde sei nunca ouvi dizer que se contratam anjos...
- Ah, corta essa! É lógico que em algum lugar se pode contratar anjos!
- Pode procurar, será perda de tempo! Anjos não se contratam porque não estão à venda! Eles são inegociáveis...
- Engano seu! O que não é negócio nesta vida, heim?
- Ora, o amor!
- Tem certeza? Até o amor é "business"! Abra agora o MSN! Vai, abra!
- Pára de tolice! Pra que iria abrir o MSN?
- Vou te mostrar como se compra amor facim, facim...
- Não vou abrir coisa alguma! Vai pensando que amor se compra, vai...
- Cara, chega a ser ridícula essa tua ideia do mito do amor romântico!
- Ridícula por quê?
- Porque isso não existe. Acabou. C’est fini. Dá pra entender ou quer que eu desenhe?
- Pra início de conversa, o amor jamais acaba...
- Voilá! São Paulo aos Coríntios!
- Correto!
- São Paulo de hoje é uma outra história. Aliás, qualquer grande cidade!
- Você sabe muito bem que me refiro ao apóstolo! É “o”, e não “a” São Paulo.
- E você sabe que no fundo, no fundo, o amor existe porque a vida também é "business". Você me ama. Eu te amo. Não importa em que nível. É assim até que eu venha conhecer um melhor ‘produto’, você sabe... Nada é perfeito. As coisas são mais práticas nos nossos dias...
- Você quer dizer mais ‘plásticas’.
- Que seja! [Cantando Titãs] "As flores de plástico não morrem". Por isso que o amor nunca acaba! Ele é plástico como tudo na vida!
- Não, agora posso dizer que você viajou legal...
- "It's true, is business!" É a realidade! O mundo muda, meu caro. Você tá nele e nunca parou pra perceber?
- Daqui a pouco vai querer me convencer que já existe o “love delivery”, pronta entrega do amor que você precisa em casa, na hora que bem desejar...
- Pode apostar que sim. Tenho amigas e até amigos que já agarraram muitos entregadores em domicílio. Duvida? Pergunte a eles o que acharam do ‘serviço’... [gargalhadas]
- Das duas uma, ou você tá ficando maluco ou eu é que não devo ser desse planeta!
- Péeeeeeeinnnnh! A campainha avisa que está correta a segunda alternativa! Uma salva de palmas ao ‘momento lucidez’!
- Chega de chistes por hoje! Chega de reduzir a vida nesse palanfrório!
- Não falei de vida. Cê tá enganado! Falei sobre o produto mais consumido no mundo capitalista depois da água e da cocaína: o amor!
- Vida. Amor. E quem te disse que um existe sem o outro?
- Bobagem! Quantos não sobrevivem sem amor!?
- Isso! Exatamente isso! Muitos até podem sobreviver. Viver requer muito mais que uma sobrevida existencial... Viver requer amor. Amor é vida. Vida sem amor não é vida, mas mera existência. Amebas existem. Formigas existem. Hienas existem e riem sem nem saber os porquês. Seres humanos não deveriam apenas existir...
- “Não deveriam apenas...”? E deveriam mais o quê?
- Viver. Sair de si. Pra amar é preciso sair de si, já dizia o poeta Vinícius.
- Mais uma vez com poesia! Blá blá blá... Isso não muda os conceitos, não muda o mundo!
- Mas pode mudar uma pessoa! Vamo embora! Desisto de prosseguir!
- Valei-me santos anjos! Vocês existem! Depois a gente acerta as contas!
- Desliga esse laptop! Um dia vai saber que o amor é um ‘anti-isso’ que me falou...
- Vamo então, poeta! A vida é escrita em versos e cifrões, queira entender ou não...
Ambos levantaram-se. Foram-se. Aquelas palavras ficaram ali presas naquele recinto. O eco parecia eclodir os vidros da rotunda bem no meio do saguão. Alguns ouvidos captaram. Só não se sabe quais daquelas verdades nem quais ouvidos as receberam, senão os do sonhador e os das estátuas de Hermes espalhadas pelo edifício. Antes o sonhador tivesse dormido e não conseguisse ouvir o que ouviu. Quando os olhos são abertos quase sempre é o coração que mais sente...
4 comentários:
Meu querido filho, amo ler suas histórias, contos... me fazem muito bem.
Nada mais a comentar, pois o sonhador de "olhos abertos" disse tudo naquele dialogo.
Beijos, meu anjo (humano) no seu coração. Mãezinha
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Coisinhas de mãe:
- Todas as pessoas grandes foram crianças antes. Mas poucas se lembram disto.
- O tesouro interior transmite-se, porém, não pela palavra, mas sim pela filiação do amor.
E, de amor em amor, lega-se uma herança.
Sempre por aqui eu estarei...
Cardo...
Ouvir histórias é muito divertido... mas eu acho que você faria outra muito melhor...hohoho
Beijos de tia avó (na testa...hahaha)
Alex
Prefiro não acreditar.
Estarei eu dando uma de avestruz?
Ah sei lá sobrevida me assusta e não me seduz,prefiro ser sonhadora.
Lindo isso aqui tb
De
Parafraseando a companheira Ro Ro, é possível sonhar de olhos abertos com o amor...
Ou será que fechando os olhos a gente pode ver melhor, além das aparências?
Viver é melhor que sonhar?
É o amor outra vez...
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